História de uma pomba gira cacurucaia


Numa noite, já bem tarde, após ter atendido a muitos clientes, Cacurucaia — uma conhecida pomba-gira que há vários anos dá consultas em um pequeno "centro" no subúrbio carioca de Bangu — sentou-se na soleira da porta do quarto onde atende aqueles que a procuram em busca de ajuda para desfazer um "trabalho" feito contra eles, para conseguir o necessitado dinheiro, o esperado trabalho, para encontrar o bem-amado ou libertar-se do mal-amado. Eu estava com um grupo de filhos-de-santo ao seu redor, todos cansados depois de uma noite de idas e vindas de vários espíritos, para resolver este ou aquele problema trazido pelos clientes ou pelos próprios filhos-de-santo. Ninguém se animava a ir embora. Sentar ali com aquela mulher recostada em uma porta decorada com imagens de tridentes e figuras diabólicas, xingando palavrões e generosamente dividindo sua cachaça, era certamente mais convidativo do que se aventurar na madrugada deserta do subúrbio carioca e esperar, sabe-se lá por quanto tempo, um ônibus que talvez acabasse nem aparecendo.
Cacurucaia ria-se dos nossos temores, e dizia ser a noite seu território. Entre um trago e outro, ela contou que numa noite igual àquela, alguns anos antes, um filho-de-santo que havia ficado até mais tarde para ajudá-la, estava já chegando a casa quando dois homens passaram correndo por ele, seguidos pelo som de tiros. Pá!Pá!Pá!, contava-nos Cacurucaia, o dedo em riste como o cano de um revólver:
Um dos homens caiu ali... na frente dele.
Um buraco nas costas...
E o outro fugido, com os pistoleiros armados atrás.
Ele [o filho-de-santo] nem viu eu chegar.
Só viu aquele bração preto assim, jogando ele no muro.12
Cacurucaia mostrou o braço, apontando sua força. Sem esconder o inegável prazer pela surpresa do filho-de-santo, ela continuou:
Eu fiquei lá, na frente dele, que nem dois namorados,
Os pistoleiros pegaram o outro homem...
Aí olharam para um lado...
Olharam para o outro...
Mas não viram ninguém.
E foram embora.
Aí eu mandei o fulano entrar pra casa dele e ficar de bico calado...
Não contar para ninguém.
Depois de mais um trago, Cacurucaia, com seu sorriso cheio de malícia, pôs fim à estória perguntando aos atentos ouvintes: "E vocês acham que eu ia deixar quem me ajudou na mão?".
A estória de Cacurucaia invoca o medo da violência e do crime presentes em qualquer hora ou lugar, para logo depois ressignificar esse universo de medo através de seu próprio poder sobre o perigo. É claro que por mais que a estória contada ofereça a óbvia resposta que a pomba-gira jamais deixaria algum mal acontecer a quem a serve — dessa forma prometendo aos seus ouvintes, naquela madrugada, uma passagem segura por "seu território" — o sorriso e a própria pergunta insistem em transformar a promessa em uma possibilidade desejada, mas de maneira alguma garantida. A única certeza oferecida pela estória é o próprio poder de Cacurucaia.